Na última semana, durante viagem ao continente africano, o presidente Lula emitiu uma declaração na qual afirmou que o que acontece atualmente na faixa de Gaza é comparável ao genocídio perpetrado pelo regime nazista contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Imediatamente após a declaração, instaurou-se uma crise diplomática entre Brasil e Israel e o presidente brasileiro passou a sofrer duríssimas críticas dos principais meios de comunicação nacionais, os quais ressaltaram incansavelmente que a declaração de Lula fora resultado de sua imperícia ao conduzir uma declaração de improviso.
A despeito da repetição incansável dessa versão, é difícil crer que um presidente que está no seu terceiro mandato e possui vastíssima experiência política tenha emitido uma declaração do tipo de maneira impensada.
De fato, não me parece que tenha sido esse o caso, em especial pelo modo como se comportou a diplomacia e o governo brasileiros diante da repercussão da fala e das exigências de retratação.
A declaração de Lula, a despeito de ser carente de proporcionalidade histórica, exprimiu o sentimento da maioria absoluta da população mundial, que vê o deslocamento de milhares de palestinos para uma faixa ainda mais estreita do território de Gaza e os bombardeios constantes não mais como parte de uma legítima política de defesa, mas, ao contrário, como um massacre que foge aceitável.
Consciente deste sentimento, o presidente brasileiro aproveitou-se da ocasião para chamar ainda mais a atenção para o conflito e buscou fortalecer sua posição no plano internacional como uma figura que se coloca e trabalha em favor da paz.
Minha percepção, portanto, destoa daquilo que foi difundido pelos principais veículos de comunicação brasileiros: Lula não somente deu uma declaração que foi previamente pensada e articulada, com objetivos políticos, como também se valeu do momento para colocar-se, mais uma vez, como uma das principais vozes globais contra o massacre perpetrado pelo governo israelense na faixa de Gaza, ao mesmo tempo em que condenou e condena os ataques do Hamas.
Prova disso é que, mesmo após as declarações de Lula, da gritaria interna generalizada e do aprofundamento da crise com Israel, a afirmação de muitos setores da imprensa de que o Brasil se isolava internacionalmente como um ator relevante para a promoção dos diálogos de paz não ocorreu.
Verificou-se exatamente o contrário: o isolamento internacional pretendido não veio e a visão da maior parte do mundo é que o Brasil se habilitou ainda mais como um interlocutor para a paz entre israelenses e palestinos, justamente por entender que a resolução dos conflitos na região presume a ausência de conflitos bélicos.
Alguns leitores podem considerar a reflexão que conduzi acima como incoerente. Afinal, como poderia um governo se habilitar à posição de interlocutor em favor da paz, realizando críticas ao governo de um país que foi brutalmente atacado por um grupo terrorista e que exerce seu pleno direito de retaliação?
A resposta é simples: o governo de Israel não quer a paz e se vale do direito de retaliação para levar a cabo uma política de ocupação e expansão territorial. O governo brasileiro, absolutamente consciente das verdadeiras intenções do governo israelense, sabe que a paz não é um de seus objetivos estratégicos, a despeito da retórica oficial israelense sempre afirmar o contrário.
Quem teve a oportunidade de se debruçar sobre os diversos trabalhos do politólogo Luiz Alberto Moniz Bandeira a respeito da política internacional (“Formação do Império Americano”, “A Segunda Guerra Fria” e “A desordem mundial” são obras de leitura obrigatória) sabe que a política histórica das diferentes administrações de Netanyahu é caracterizada pela promoção de assentamentos ilegais, ocupação territorial da faixa de Gaza e bloqueio das medidas em prol da criação de um Estado palestino.
Nesse sentido, os ataques do último 7 de outubro servem, atualmente, de pretexto para que os extremistas que atualmente ocupam o poder em Israel levem à cabo a histórica política de massacre dos palestinos e de expansionismo territorial.
A alegação de que a completa destruição do Hamas é o objetivo central da guerra constitui-se uma peça de propaganda e relações públicas, porquanto este objetivo não pode ser concretizado.
O Hamas não deixará de existir e quanto mais os ataques israelenses se perpetram, maiores são as chances de que os palestinos deem legitimidade a movimentos políticos que defendem a violência como elemento condutor das relações com Israel.
Diante das condições políticas naquela região, do crescente isolamento internacional de Israel e da aposta do governo de Netanyahu em aprofundar o uso da força e da violência, o fim das hostilidades somente se mostra possível a partir do estabelecimento de uma nova coalizão política de ambos os lados do conflito que estejam efetivamente dispostas a negociar o cessar-fogo.
Contudo, mesmo diante de uma pausa nas hostilidades, não podemos ter nenhuma ilusão a respeito de uma solução definitiva que crie dois Estados. O
s ressentimentos existentes de ambos os lados ainda alimentarão, por longo período, as desconfianças entre as autoridades de Israel e Palestina e bloquearão a efetiva implementação de políticas que favoreçam a solução de dois Estados.