Radar/Opinião

* Por Maria Eduarda Especialista em Direito Penal

O ASSUNTO É

Falsa toga e cárcere privado expõe e desmoraliza justiça do Distrito Federal

Publicado em

O caso que chocou Brasília, um homem de 64 anos identificado como “juiz de paz e conciliação” e manteve uma adolescente de 16 anos em cárcere privado durante sete dias, não pode ser tratado como mais um episódio policial.

É, antes de tudo, um alerta sobre a fragilidade institucional de um país onde títulos e
aparências ainda são suficientes para abrir brechas à violência e à manipulação.

Segundo a Polícia Militar do Distrito Federal, a adolescente foi resgatada no Sol Nascente por equipes do 10⁠º BPM, ocasião em que três pessoas foram presas, entre elas um homem de 64 anos identificado pela corporação como “juiz de paz
e conciliação”.

Até o momento, não há notícia pública de que ele tenha sido solto em audiência de custódia, tampouco confirmação oficial do Tribunal de Justiça do DF e Territórios sobre sua condição funcional, se de fato exercia regularmente a função de juiz de paz ou apenas se autointitulava.

Esse silêncio institucional é tão grave quanto o crime em si: se era um falso representante, revela falha do Estado em fiscalizar quem se arvora em autoridade, se era legitimamente nomeado, exige-se transparência quanto ao afastamento imediato e às medidas disciplinares cabíveis.

A ausência de respostas claras corrói ainda mais a confiança na Justiça e reforça a sensação de impunidade.

A Constituição Federal é cristalina, o art. 5o, incisos II, III e LXI, estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei, que ninguém será submetido a tortura ou tratamento degradante e que a prisão só pode ser determinada por flagrante ou ordem judicial competente.

O que ocorreu no Distrito Federal não foi apenas a violação da liberdade de uma jovem,
foi uma afronta direta ao núcleo essencial do Estado Democrático de Direito.

O art. 148 do Código Penal tipifica o cárcere privado, com pena de 1 a 3 anos, agravada quando a vítima é menor de idade.

Some-se a isso a suspeita de abuso sexual, que remete ao art. 217-A do mesmo diploma, definindo o estupro de vulnerável como crime hediondo, punido com até 15 anos de prisão.

Em tais circunstâncias, não há consentimento possível. A própria vulnerabilidade da vítima elimina qualquer margem de relativização.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é igualmente taxativo, em seus arts. 5o e 70, assegura a obrigação de prevenir e reprimir todas as formas de violência contra menores.

A norma existe, o que falta é sua efetiva aplicação. A omissão estatal também pesa, a adolescente chegou a enviar mensagens de socorro à mãe, mas demorou dias para ser localizada.

O art. 227 da Constituição consagra prioridade absoluta à proteção de crianças e adolescentes. Já o art. 37, §6o, impõe ao Estado responsabilidade objetiva por atos ou omissões de seus agentes. Nesse caso, a lentidão do resgate não foi apenas falha, foi
cumplicidade indireta.

O impacto ultrapassa a esfera individual, cada episódio dessa natureza mina a confiança social na Justiça, restringir a liberdade de uma adolescente, resta a pergunta incômoda: o que sobra da autoridade legítima do Estado?

A cada omissão, cresce a descrença, e, com ela, um terreno fértil para a insegurança e para o descrédito da lei que deveria proteger.

O cárcere privado no DF não é apenas um crime hediondo, é o retrato de um Estado inoperante, incapaz de fiscalizar falsos representantes, de proteger crianças e adolescentes
e de reagir com a urgência que a situação exige.

A Constituição proclama a dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) como fundamento da República. No entanto, na prática, adolescentes permanecem vulneráveis até mesmo na capital federal.

Punir o autor é necessário, mas não é suficiente, o verdadeiro desafio é enfrentar a falência institucional que episódios como este escancaram.

Porque, quando uma adolescente é privada de liberdade e violentada, não é apenas a vítima que sofre, é o próprio Estado que se desmoraliza perante a sociedade e diante de
sua promessa constitucional de proteção.

*Maria Eduarda é bacharel em direito, especialista em Direito Penal, Processual Penal e técnica em Criminologia. Quer falar comigo? mesqueirozdf@gmail.com

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