Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos, em razão de sua preponderância econômica, financeira, política e militar, conseguiram obter do restante do mundo a aceitação (ou imposição)de sua moeda, o dólar estadunidense, como o ativo a ser adotado nos empréstimos e nas trocas comerciais internacionais.
Deste poder, surgiram dois« privilégios exorbitantes », se recorro à expressão popularizada pelo presidente francês Charles de Gaulle.
Em primeiro lugar, a superpotência americana obteve o poder de imprimir sua própria moeda e financiar seu padrão de desenvolvimento socioeconômico a uma taxa de inflação quase nula.
Em segundo lugar, os Estados Unidos passaram, gradativamente, a obter grande poder de ingerência sobre os rumos políticos e econômicos do restante da humanidade, tendo em vista que as reservas internacionais dos países passaram a ser compostas majoritariamente de dólares estadunidenses.
Enquanto a posição dos ianques como superpotência dominante não era questionada, esse sistema funcionou sem muitas turbulências, notoriamente porque os países do mundo em desenvolvimento não dispunham de métodos e meios para se contrapor a tal preponderância.
Contudo, devido à (re)ascensão da China como superpotência global e com o surgimento de outros atores desafiadores da ordem liberal estadunidense, a posição privilegiada do dólar nas relações comerciais internacionais passou a ser questionada.
A semente da chamada desdolarização, isto é, o abandono do dólar como moeda de troca e de reserva, passou a ser especialmente irrigada após a guerra da Ucrânia.
O congelamento dos ativos russos em dólares pelos ocidentais gerou um temor generalizado em diversos países, como a Arábia Saudita, de que seus ativos não estariam seguros no caso de um conflito contra os EUA.
A utilização do dólar como uma arma de guerra não-convencional, tema muito bem detalhado no livro de Juan Zarate, Os tesouros da guerra: a deflagração de uma nova era de guerra financeira, estimulou o início das discussões nos mais altos níveis políticos no sul global com o objetivo de se formularem alternativas para um sistema de comércio e financeiro que escapassem ao dólar.
A construção de alternativas ao dólar se conforma, gradativamente, como uma medida essencial para a securitização do desenvolvimento no Sul global, especialmente no mercado petrolífero, cuja base é o dólar.
Assim, diferentes alternativas ao dólar emergem. A construção de um sistema de trocas em moedas locais, de uma nova moeda no âmbito dos BRICS ancorada numa cesta de moedas ou até mesmo a substituição da moeda estadunidense pelo renminbi chinês se colocam como alternativas práticas para a desdolarização.
Não obstante o entusiasmo daqueles que anseiam por uma decadência acelerada dos EUA, o projeto de desdolarização ainda tem um grande caminho a percorrer. Desafios de ordem política, econômica e ideológica dificultam sua plena realização.
As três opções anteriormente aventadas exigem um alto nível de concertação política no âmbito internacional, além de um elevado grau de compromisso doméstico entre os atores políticos e econômicos dos países que almejam gradativamente desvencilhar-se da moeda estadunidense.
A formulação de um novo sistema de pagamentos é igualmente complexa, pois depende da confiança dos diversos atores econômicos e políticos no sistema de preços e na garantia de lucros para as atividades econômicas.
Das opções acima apresentadas, o reforço das trocas comerciais em moedas locais é aquela que se encontra em estágio mais avançado.
A experiência da zona europeia comprova, por exemplo, que o bloco europeu tornou-se menos suscetível às flutuações internacionais do dólar.
De fato, recentemente a Rússia implementou acordos comerciais em moedas locais com Índia e Arábia Saudita, realizando comércio de petróleo e commodities fora do sistema de pagamentos do dólar.
Por outro lado, a construção de uma cesta de moedas em substituição ao dólar no âmbito dos BRICS ou a completa internacionalização do renminbi são alternativas que não se encontram no horizonte imediato ou mesmo de médio prazo.
Uma moeda dos BRICS exige um altíssimo nível de concertação política no bloco, o que se torna cada vez mais difícil dada a recente expansão do bloco.
Por sua vez, a internacionalização do renminbi não está no horizonte chinês de curto prazo, especialmente porque a China obtém parte significativa dos seus ganhos no comércio internacional com o uso do dólar e se favorece dos títulos da dívida pública estadunidense em dólar.
Por último, não se deve crer que qualquer esforço concentrado de desdolarização seria realizado em uma reação dos EUA.
Apesar de menos hegemônicos que décadas atrás, os estadunidenses ainda gozam de um poder internacional considerável, com grande capacidade de intervenção econômica, financeira e militar a serem utilizadas e necessários a fim de preservar o « privilégio exorbitante » de sua moeda.
*Caio Rafael Corrêa Braga é Internacionalista. Pesquisador na Amarante Consulting. Morou e estudou na França, Itália e Alemanha. Atualmente, encontra-se em Berlim e é colunista exclusivo do Radar DF.