O caso que chocou Brasília, um homem de 64 anos identificado como “juiz de paz e conciliação” e manteve uma adolescente de 16 anos em cárcere privado durante sete dias, não pode ser tratado como mais um episódio policial.
É, antes de tudo, um alerta sobre a fragilidade institucional de um país onde títulos e
aparências ainda são suficientes para abrir brechas à violência e à manipulação.
Segundo a Polícia Militar do Distrito Federal, a adolescente foi resgatada no Sol Nascente por equipes do 10º BPM, ocasião em que três pessoas foram presas, entre elas um homem de 64 anos identificado pela corporação como “juiz de paz
e conciliação”.
Até o momento, não há notícia pública de que ele tenha sido solto em audiência de custódia, tampouco confirmação oficial do Tribunal de Justiça do DF e Territórios sobre sua condição funcional, se de fato exercia regularmente a função de juiz de paz ou apenas se autointitulava.
Esse silêncio institucional é tão grave quanto o crime em si: se era um falso representante, revela falha do Estado em fiscalizar quem se arvora em autoridade, se era legitimamente nomeado, exige-se transparência quanto ao afastamento imediato e às medidas disciplinares cabíveis.
A ausência de respostas claras corrói ainda mais a confiança na Justiça e reforça a sensação de impunidade.
A Constituição Federal é cristalina, o art. 5o, incisos II, III e LXI, estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei, que ninguém será submetido a tortura ou tratamento degradante e que a prisão só pode ser determinada por flagrante ou ordem judicial competente.
O que ocorreu no Distrito Federal não foi apenas a violação da liberdade de uma jovem,
foi uma afronta direta ao núcleo essencial do Estado Democrático de Direito.
O art. 148 do Código Penal tipifica o cárcere privado, com pena de 1 a 3 anos, agravada quando a vítima é menor de idade.
Some-se a isso a suspeita de abuso sexual, que remete ao art. 217-A do mesmo diploma, definindo o estupro de vulnerável como crime hediondo, punido com até 15 anos de prisão.
Em tais circunstâncias, não há consentimento possível. A própria vulnerabilidade da vítima elimina qualquer margem de relativização.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é igualmente taxativo, em seus arts. 5o e 70, assegura a obrigação de prevenir e reprimir todas as formas de violência contra menores.
A norma existe, o que falta é sua efetiva aplicação. A omissão estatal também pesa, a adolescente chegou a enviar mensagens de socorro à mãe, mas demorou dias para ser localizada.
O art. 227 da Constituição consagra prioridade absoluta à proteção de crianças e adolescentes. Já o art. 37, §6o, impõe ao Estado responsabilidade objetiva por atos ou omissões de seus agentes. Nesse caso, a lentidão do resgate não foi apenas falha, foi
cumplicidade indireta.
O impacto ultrapassa a esfera individual, cada episódio dessa natureza mina a confiança social na Justiça, restringir a liberdade de uma adolescente, resta a pergunta incômoda: o que sobra da autoridade legítima do Estado?
A cada omissão, cresce a descrença, e, com ela, um terreno fértil para a insegurança e para o descrédito da lei que deveria proteger.
O cárcere privado no DF não é apenas um crime hediondo, é o retrato de um Estado inoperante, incapaz de fiscalizar falsos representantes, de proteger crianças e adolescentes
e de reagir com a urgência que a situação exige.
A Constituição proclama a dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) como fundamento da República. No entanto, na prática, adolescentes permanecem vulneráveis até mesmo na capital federal.
Punir o autor é necessário, mas não é suficiente, o verdadeiro desafio é enfrentar a falência institucional que episódios como este escancaram.
Porque, quando uma adolescente é privada de liberdade e violentada, não é apenas a vítima que sofre, é o próprio Estado que se desmoraliza perante a sociedade e diante de
sua promessa constitucional de proteção.
*Maria Eduarda é bacharel em direito, especialista em Direito Penal, Processual Penal e técnica em Criminologia. Quer falar comigo? mesqueirozdf@gmail.com