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Lula, a anistia e o casuísmo: apoio em 1988, crítica hoje

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A Constituição de 1988 foi batizada de Cidadã. Mas, entre os dispositivos que a moldaram, há um ponto que hoje muitos tentam apagar da memória: a escolha deliberada de permitir a anistia a crimes contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

O texto original previa que tais crimes seriam inafiançáveis, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia. Foi o deputado Carlos Alberto Caó quem apresentou o destaque para suprimir a vedação da anistia.

O plenário aprovou por 281 votos a favor e 120 contrários. Entre os que disseram “sim” estava Luiz Inácio Lula da Silva, então deputado constituinte, alinhado ao chamado Centrinho, a ala de esquerda que buscava diferenciar-se do Centrão conservador.

Não foi decisão envergonhada. Pelo contrário, houve defesa aberta e articulada. Jutahy Magalhães sustentou na tribuna que a anistia deveria permanecer como instrumento político legítimo, capaz de pacificar a sociedade e desarmar os espíritos em momentos de crise.

A anistia, dizia ele, era parte da tradição democrática e deveria estar disponível para governos que quisessem lançar mão dela.

Assim ficou a Constituição: crimes contra a ordem constitucional são inafiançáveis e imprescritíveis, mas não estão blindados contra anistia.

Foi uma decisão política, jurídica e histórica. Registrada nos anais da Constituinte, gravada no voto de Lula, no discurso de Jutahy e no destaque de Caó.

E o que vemos hoje? Uma inversão completa. Os mesmos líderes que em 1988 defenderam e votaram a favor da possibilidade de anistiar agora bradam contra, como se jamais tivessem admitido tal hipótese.

A anistia, antes vista como válvula de pacificação, passou a ser demonizada em nome de um moralismo conveniente.

Entre todos os constituintes de esquerda que votaram, sim, naquela sessão histórica, como Eduardo Jorge, Paulo Delgado, Roberto Freire e Plínio Arruda Sampaio, apenas Lula permanece em plena atividade política.

Os demais se afastaram, aposentaram-se ou já não estão entre nós. Isso torna o contraste ainda mais gritante: o homem que votou pela possibilidade de anistiar em 1988 é o mesmo que, em 2025, encarna a negação absoluta dessa mesma possibilidade.

Não há coerência alguma nesse movimento. Há apenas casuísmo. A Constituição Cidadã foi usada quando interessava e é renegada quando incomoda.

A memória é seletiva, o discurso é adaptado e os princípios são tratados como peças descartáveis.

Esse não é um debate sobre evolução política, é sobre conveniência. É a prova de que a mesma liderança que pregava flexibilidade democrática hoje se aferra à rigidez mais conveniente para manter controle e punir adversários.

O que antes foi exaltado como sinal de maturidade institucional agora é apresentado como ameaça à democracia.

Os registros oficiais não mentem. O voto de Lula, a defesa de Jutahy, a proposta de Caó, a posição do Centrinho.

Tudo documentado, tudo público. E é justamente essa história que expõe o abismo entre o que se disse e o que se diz.

Entre 1988 e hoje, o que mudou não foi a Constituição, foi a conveniência política.

A anistia, que em 1988 foi tratada como instrumento de pacificação virou, nas mãos dos mesmos atores, tabu conveniente.

A Constituição é a mesma. O que mudou foi apenas a conveniência de quem hoje a invoca.

*Everardo Gueiros – especialista em direito eleitoral, direito e processual civil e direito empresarial. Foi secretário de estado de Projetos Especias e desembargador do TRE-DF

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