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Fanatismo, Intolerância e Injustiça corroem o diálogo e afastam a sociedade

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Cresce o número de pessoas que não veem mais TV. Alegam que só transmite violência, corrupção ou notícias falsas. Esse conteúdo, entretanto, continua a alcançá-las, pelas redes sociais, grupos de mensagens, canais virtuais privados e coletivos.

O lado bom desse cenário é que evita o confronto físico, pessoal, que advém do fanatismo e da intolerância que se alastraram como vírus contagioso e eficaz, transformando indivíduos em agentes obcecados por projetos autodestrutivos da sociedade.

No confronto entre fanáticos e qualquer outra pessoa, não há, para aqueles, opções. Só alternativa: Quem não está com eles, está contra eles. É o fanatismo alimentando a intolerância. As pessoas já não conseguem mais conversar serenamente.

Os diálogos logo se transformam em confronto e acabam em aborrecimentos, que evoluem para ofensas, agressões e, não raros, desfechos fatais. O fanatismo e a intolerância passaram a inviabilizar a comunicação entre as pessoas.

Amizades se rompem porque não conseguem conviver com as divergências. Algumas pessoas se retiram dos grupos virtuais (ou presenciais) por não aceitarem opiniões divergentes. Outras são expulsas ou excluídas justamente por expressarem as suas.

É a supremacia do fanatismo e da intolerância. A fraternidade nunca teve vez, senão como parte do lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A liberdade e a igualdade foram sistematicamente transformadas em bandeiras de reivindicação, pautas de debates políticos e movimentos sociais, e incorporadas aos ordenamentos jurídicos, não raro extrapolando os próprios princípios, criando-se universos de privilegiados, hostilizando-se os que não se enquadram nas caracterizações desses universos.

A fraternidade permanece como apenas e tão somente uma abstração, cuja concretização o senso comum é ciente de sua impossibilidade.

A Constituição Federal de 1988, no seu preâmbulo, anuncia o compromisso do Estado brasileiro com a construção de uma sociedade fraterna, proclamando que, para além de direitos civis e políticos, deve buscar-se a promoção de uma sociedade baseada no respeito mútuo, na solidariedade entre os cidadãos.

Esse ideal, contudo, está cada vez mais distante, comprometido pelo desvio das finalidades do Estado, de suas instituições. Ideal desviado pela ganância daqueles que, no exercício de funções do Poder Público, usam os cargos que ocupam para satisfazer interesses pessoais, aplaudidos pelo fanatismo alimentado pela ignorância, bases estruturais da intolerância, biombo inútil para esconder a corrupção escancarada, no assalto aos cofres públicos, no atentando aos valores da moralidade e aos princípios do Estado Democrático de Direito.

Sem tolerância, não há espaço para a fraternidade. Tolerância não é condescendência ou passividade, mas o reconhecimento concreto de que o pluralismo é um valor democrático inegociável. O dissenso, mediado pelo respeito, é saudável nas sociedades livres.

Para Norberto Bobbio (A Era dos Direitos, 1992), “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.” Nesse contexto, a tolerância – embora não conceituada como direito – é condição essencial para que a convivência democrática possa prosperar.

Há mais de dois séculos, Voltaire (1694-1779) abordou o tema do fanatismo (Traité sur la Tolérance: a l´occasion de la mort de Jean Calas, 1763) ao escrever sobre a condenação e a execução de Jean Calas, em Toulouse (França), injustamente acusado da morte de seu filho Marc-Antoine, que se suicidara. Convencido da inocência de Jean Calas, Voltaire empenhou-se para que o processo fosse revisto e Calas inocentado.

O Tratado, que se refere especificamente ao fanatismo religioso, que tantas mortes causou e continua causando, permanece atual. A motivação atribuída a Jean foi de não aceitar que Marc se convertesse ao catolicismo. “Algum fanático – relata Voltaire – no meio da multidão gritou que Jean Calas havia enforcado o próprio filho […] Esse grito foi repetido e, num instante, tornou-se unânime; […] Depois que os espíritos são arrebatados, não há mais como acalmá-los.” E prossegue relatando as narrativas que, repetidas, instrumentalizam as injustiças que a História de todos os tempos registra.

Recurso que Joseph Goebbels teria consagrado, como ministro da Propaganda, aplicando-o para manipular a opinião pública alemã, segundo a frase que lhe é comumente atribuída: “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.

Há uma passagem emblemática no Tratado, quando Voltaire revela a fragilidade do senso coletivo de justiça: devotos, inimigos da família Calas, por questões religiosas, “proclamavam em altas vozes que era melhor supliciar na roda um velho calvinista inocente do que expor oito dos conselheiros de Languedoc ao reconhecimento de que se haviam enganado. […] só se pode inferir a partir daí que a família Calas deveria ser imolada em honra da magistratura.

Ninguém sequer levava em consideração que a honra dos juízes consiste, como a de todos os demais homens, em serem capazes de reparar as faltas que cometeram.”

A injustiça foi reparada pelos desembargadores da Câmara de Requerimentos da Casa Real, tribunal soberano que julgava, dentre outras, as causas que o Rei lhe enviava. À unanimidade, foi declarada a inocência da família Calas, “julgada errônea e abusivamente pelo parlamento de Toulouse.”

Os desembargadores, por decisão constante em sentença, suplicaram ao Rei que reparasse a ruína causada aos acusados. Luís XV (Luís, o Bem Amado) os atendeu mandando entregar 36 mil libras à família.

Daí Voltaire finaliza o seu Tratado: “Possa esse exemplo servir para inspirar aos homens a tolerância, sem a qual o fanatismo desolaria a terra ou no mínimo a entristeceria para sempre! Sabemos perfeitamente que se trata aqui de apenas uma família, enquanto a raiva sectária fez perecer milhares.

Contudo, hoje, quando uma sombra de paz deixa a um repouso todas as sociedades cristãs após séculos de carnificinas, é neste tempo de tranquilidade que a infelicidade dos Calas deve causar uma maior impressão, tal como uma trovoada que retumba na serenidade de um dia de sol. Esses casos são raros, mas acontecem, e são o efeito dessa sombria superstição que induz as almas fracas a imputar crimes a qualquer um que não pense como eles.”

Ao contrário do que esperava Voltaire – referindo-se às sociedades cristãs -, o mundo não passou a viver sob a sombra da paz. E os casos de injustiça motivados por fanatismo não são raros, mas cotidianos e, por vezes, institucionalizados. Ocorrem quando não interessa a verdade, mas a versão.

Esse caminho jamais será o da justiça. Nem mesmo da justiça relativa a que se referiu Hans Kelsen (What is Justice?, 1957).

Aquela “sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância.”

*Carlos Nina é jornalista, advogado, ex-presidente da OAB-MA e ex-conselheiro federal da OAB.

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