*Por Luciana Rebouças Lourenço
A excessiva valorização imobiliária agregada às áreas centrais de Brasília (de melhor tratamento urbanístico, saneamento básico, iluminação pública, ruas pavimentadas, etc.), faz com que os moradores mais necessitados não tenham condições de adquirir imóveis nestas zonas. Da mesma forma como ocorre em outros estados e até em outros países, a população que tem condições de pagar mora na “cidade regularizada”, enquanto a população desprovida de recursos financeiros habita a “cidade ilegal”. Mas há uma situação peculiar ao Distrito Federal, que não se encontra com tamanha frequência em outros lugares: a demolição sumária de residências familiares, edificadas sem licenciamento.
spera-se que as pessoas, públicas ou privadas, não caiam em contradição com atos e comportamentos anteriores. O GDF se omitiu, durante décadas, em conceder soluções para a política habitacional. Noutra mão, essa omissão dos responsáveis, quase sempre justificada por falhas de gestão, reservas financeiras ou contingente, inspirou a confiança do administrado de que a construção se encontrava regular ou seria regularizada.
Os agentes públicos não podem, em nenhuma hipótese, proceder demolições sumárias de habitações familiares, sem possibilitar ao particular o devido processo legal, com a oportunização de prazo razoável para ampla defesa e contraditório, no âmbito administrativo, assegurados pela Constituição da República e pela Lei Orgânica do DF. A necessidade de observância aos preceitos constitucionais e legais pelos agentes públicos é o que difere os estados ditatoriais dos estados de direitos.
Além disso, há de se reconhecer o direito fundamental à moradia que assiste a todos os brasileiros, inclusive aos habitantes do DF, como decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana. Nas palavras do ilustre professor Ingo Sarlet, sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família contra as tempestades, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das circunstâncias, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida.
Deve-se compreender de uma vez por todas: quando um agente público derruba uma casa, ele não está apenas destruindo tijolos, está retirando daquela família o chamado MÍNIMO EXISTENCIAL. A população merece uma resposta condigna por parte do Estado, que não se resume na simples demolição, mas sim em uma política habitacional justa, embora tardia.
O direito à moradia foi incluído no texto constitucional mediante compromisso assumido pelo Brasil na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, dentre outros pactos internacionais, pelos quais restou assegurado que a moradia adequada constitui um direito básico da pessoa humana, bem como a previsão quanto às responsabilidades gerais e específicas dos Estados signatários para a sua realização – que não vem sendo cumpridas pelo GDF, enquanto gestor de um ente federado.
Significa dizer que, na remota hipótese de os cidadãos brasileiros não encontrarem guarida ao seu direito fundamental à moradia nos tribunais locais, a questão poderá ser discutida e definida na Corte Interamericana de Direitos Humanos e, ainda, na Corte Internacional de Justiça, o que, com o devido acatamento, será um grande constrangimento à Justiça brasileira.
Com efeito, na condição de agentes que atuam em nome da Administração Pública, os fiscais da AGEFIS e da SEOPS não podem esquecer sua primeira natureza: de seres humanos – passíveis, portanto, de falhas, erros e equívocos.
A derrubada de uma casa é uma medida drástica e que pode ser considerada irreversível, diante dos prejuízos financeiros e psicológicos, além das dificuldades às quais ficam expostas as pessoas que perderam a residência.
É um contrassenso que, justamente na Capital Federal, reconhecida como o berço das novas ideias, a resposta do Estado ao grave problema fundiário causado por sua exclusiva omissão seja revestida de atitude extremamente conservadora, ao tratar a questão SOCIAL dos assentamentos irregulares, que deveria ser vista como uma conquista de direitos, sob a perspectiva CRIMINAL.
Ano após ano, as mais diferentes legendas políticas limitam-se a agir sob o mesmo propósito DEMOLITORIO – uma solução repressora e sem nenhum compromisso democrático. A completa inversão entre a causa e o efeito do problema fundiário resulta no agravamento das diferenças sociais por configurar-se em atos flagrantemente seletivos. Consequentemente, intensificam-se todos os problemas decorrentes da desigualdade social urbana, como a violência e a criminalidade.
Quando o CIDADÃO realiza uma emergência jurídica em busca da efetivação do direito à moradia, confere substância real à função social da propriedade e, ao mesmo tempo, uma dimensão efetiva ao direito positivado na Constituição. Por outro lado, ao intervir e desconstituir essa emergência jurídica, o Estado deveria ter em seu favor argumento plausível. A proibição de construir não pode carregar consigo a pura ideia de que a vontade estatal é simplesmente preservar a propriedade da terra para negociá-la em grupos de interesse comprometidos com a especulação imobiliária. Sempre que os agentes públicos deixam transparecer esse desvio de finalidade prestam um enorme desserviço à função social da propriedade e à democracia em si.
* Luciana Rebouças Lourenço é advogada especialista em Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e pós-graduanda em Direito Imobiliário e Registral no Instituto de Direito Público de Brasília.