Enquanto o Senado se debruça sobre a CPI das Bets, o Brasil assiste a mais um espetáculo político que expõe uma velha contradição: o Estado que se apresenta como moralizador é o mesmo que lucra com o vício. Regula o jogo quando lhe convém e criminaliza quando não arrecada.
O que está em pauta vai muito além das apostas esportivas ou dos influenciadores digitais. Está em jogo a incoerência estrutural de um país que condena o azar, a não ser que o bilhete tenha timbre oficial.
Instaurada em novembro de 2024, a Comissão Parlamentar de Inquérito das Bets nasceu com a justificativa de investigar “a influência das apostas on-line no orçamento das famílias brasileiras, a lavagem de dinheiro e o uso de influenciadores digitais”.
Amparada pelo art. 58, § 3o, da Constituição Federal, a CPI tem poderes equivalentes aos do Judiciário: pode requisitar documentos, quebrar sigilos e convocar testemunhas. Tudo dentro da legalidade. O problema é o recorte da investigação.
O Senado diz combater “apostas ilegais”, mas o próprio Estado, por meio da Caixa Econômica Federal, promove jogos de azar travestidos de “loteria oficial”. A diferença não é ética, é fiscal.
O jogo do bicho, nascido no final do século XIX, é o embrião do mercado de apostas no Brasil. Condenado pelo art. 58 do Decreto-Lei no 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), ele continua firme, agora modernizado, com bancas informatizadas e até presença nas transmissões esportivas.
Apesar da proibição, movimenta bilhões por ano e se mantém como uma “ilegalidade tolerada”: punido no papel, mas integrado à economia real. O Estado, que finge combatê-lo, na prática o usa como modelo para tributar e regulamentar as apostas modernas. A CPI das Bets, ao ignorar essa herança, acaba investigando o “filho digital” e poupando o “pai histórico”.
O contraste é gritante: apostar em resultados aleatórios é crime quando o jogo é privado, mas é perfeitamente aceitável quando operado pelo Estado.
A Lei no 13.756/2018, que regulamenta as apostas esportivas de quota fixa, e o Decreto no 11.796/2023, que define normas para sua exploração, apenas institucionalizam essa incoerência.
Enquanto o art. 50 da Lei das Contravenções Penais ainda pune o jogo de azar, o governo promove Mega-Sena, Lotofácil e Quina com o argumento de que parte da arrecadação vai para “finalidades sociais”.
Mas moralidade não se compra com porcentagens de lucro. Se o vício, o endividamento e o incentivo ao risco são problemas reais, eles não desaparecem só porque o bilhete tem o selo da Caixa.
A única diferença entre o jogo do bicho e a Mega-Sena é o destino do lucro: num, o banqueiro; no outro, o Tesouro.
O Estado brasileiro mantém uma postura hipócrita e utilitarista: criminaliza para controlar e regula para arrecadar. Demoniza o jogo privado em nome da moralidade, enquanto estimula o jogo oficial em nome da arrecadação.
O vício em jogos, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (CID-11, código 6C50) como transtorno de comportamento aditivo, é o mesmo, seja em uma banca clandestina, num site de apostas ou em um bilhete premiado da loteria.
A CPI das Bets tem seus méritos. Trouxe à tona contratos publicitários suspeitos, influenciadores promovendo apostas a menores de idade e a falta de transparência na movimentação financeira. Mas erra no essencial: ignora o papel histórico do próprio Estado na exploração do azar.
Como investigar o vício sem discutir a omissão estatal na regulamentação do jogo? Como apontar crimes financeiros sem reconhecer que o governo também é um operador de apostas em massa?
Sem políticas públicas de prevenção ao vício, sem campanhas educativas e sem fiscalização coerente, a CPI vira espetáculo. Investigar os “tigrinhos” é fácil; enfrentar o “leão” do Tesouro, nem tanto.
O tratamento jurídico do jogo de azar revela o uso simbólico do Direito Penal: uma vitrine moral que disfarça a ineficácia do Estado.
Como lembra Eugenio Raúl Zaffaroni, o poder público criminaliza seletivamente, para manter o controle social, sem resolver o problema que finge combater. Enquanto o cidadão comum é punido pelo art. 50, grandes plataformas firmam contratos milionários com clubes e federações. O mesmo Estado que apreende caça-níqueis patrocina sorteios televisivos e campanhas que celebram o “novo milionário da semana”.
Essa incoerência corrói a legitimidade das instituições e banaliza a própria lei. O art. 37 da Constituição, que exige moralidade e impessoalidade na administração pública, é violado toda vez que o Estado se comporta como empresário do azar.
A CPI das Bets será inútil se se limitar às manchetes. É hora de repensar o modelo jurídico e ético do jogo no Brasil, não para punir o ato de apostar, mas para corrigir o duplo padrão com que o Estado o regula.
Enquanto o país continuar punindo o pobre, legalizando o rentável e moralizando o midiático, permanecerá refém do próprio paradoxo.
Uma legalização transparente e controlada, com proteção ao consumidor, auditoria de algoritmos e tributação justa, seria mais honesta do que a atual guerra de hipocrisias.
O Brasil precisa decidir: quer combater o vício ou lucrar com ele? Se a preocupação é moral, que se proíbam todos os jogos, inclusive os estatais. Se é econômica, que se legalize tudo, com responsabilidade e transparência.
Mas manter o discurso da pureza enquanto se arrecada com o azar é o pior dos mundos: o da moralidade tributada.
No fim das contas, a CPI das Bets não deveria apenas expor influenciadores e sites de apostas. Deveria revelar quem é o maior apostador do país: o próprio Estado brasileiro.
*Maria Eduarda é bacharel em direito, especialista em Direito Penal, Processual Penal e técnica em Criminologia. Quer falar comigo? mesqueirozdf@gmail.com