Radar/Opinião

Marcelo Senise
Marcelo Senise
Sociólogo, Marqueteiro e especialista em Comportamento Humano
O ASSUNTO É

A democracia não sobrevive à omissão diante da manipulação digital

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Há algo mais perigoso do que o autoritarismo declarado: o colapso silencioso das liberdades, promovido não por tiranos, mas pela omissão das instituições que deveriam nos proteger. O Brasil está à beira desse abismo — e poucos parecem perceber o quão fundo ele pode ser.

Enquanto o Supremo Tribunal Federal revisita o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, a sociedade acompanha, sem fôlego, o avanço de tecnologias capazes de moldar a realidade com precisão aterradora.

Ferramentas de inteligência artificial como o Veo 3, da Google, já conseguem criar vídeos hiper-realistas apenas com comandos de texto. São cenas, discursos e “provas” que nunca existiram — mas que parecem reais o suficiente para destruir reputações, manipular afetos e alterar o curso de uma eleição.

Esse não é mais um alerta sobre fake news. É sobre um novo regime informacional, onde a mentira não é apenas disseminada: ela é produzida sob demanda, com aparência de verdade e capacidade de viralização imediata.

Em 2026, o Brasil pode enfrentar não uma eleição, mas uma batalha de versões sintéticas da realidade. E, até agora, não temos as defesas mínimas para lidar com isso.

O que está sendo julgado no STF — a possibilidade de responsabilizar plataformas digitais por conteúdos considerados ilegais sem decisão judicial prévia — pode parecer técnico, mas é profundamente político.

Se o tribunal optar por validar a remoção de conteúdos com base apenas em notificações, oficializaremos uma forma de censura terceirizada, automatizada e sem contraditório.

É nesse ponto que preciso ser enfático: a maior falha não está no ativismo do Judiciário, mas no silêncio constrangedor do Legislativo. É o Congresso quem deveria estar liderando esse debate. É ali que se legisla, se constrói o pacto democrático, se ouve a sociedade e se formula a resposta institucional à nova era tecnológica. Mas o que vemos, salvo raras exceções, é a apatia, o adiamento, a falta de compreensão da urgência.

Já são mais de 200 projetos de lei sobre inteligência artificial tramitando de forma dispersa, sem coordenação ou estratégia. Depois de dois anos de mobilização, conseguimos a criação de uma Comissão Especial para tratar do tema. Mas só isso não basta. O Parlamento precisa entender que o tempo da hesitação passou. Se não for agora, será tarde demais.

A ausência de um marco legal claro e robusto entrega ao Judiciário — e, pior, às próprias plataformas — o poder de decidir o que pode ou não circular no debate público. E não se trata apenas de discursos de ódio ou mentiras eleitorais. O risco real é que, em nome da proteção, passemos a suprimir críticas legítimas, sátiras, denúncias e dissensos políticos que incomodam. A verdade se torna vulnerável quando a remoção é movida por medo e não por justiça.

Regular não é censurar. É criar regras estáveis, proteger a pluralidade e responsabilizar abusos com equilíbrio. Mas quando o Congresso se omite, o Judiciário intervém. E quando ambos falham, o controle da palavra pública vai parar nas mãos de quem tem mais poder — e não necessariamente mais legitimidade.

A democracia exige ruído, fricção, confronto de ideias. Ela não sobrevive ao silêncio induzido por notificações, nem ao apagamento de conteúdos por plataformas temerosas. E muito menos resiste a uma avalanche de vídeos falsos que transformam o debate em espetáculo e o cidadão em marionete.

Estamos vivendo o nascimento de uma distopia de aparência democrática, onde tudo parece legal, mas nada é legítimo. A realidade está sendo desfigurada por códigos, algoritmos e decisões técnicas tomadas em salas fechadas, longe do olhar do público. E a única força capaz de reequilibrar esse cenário é o poder legislativo, se estiver disposto a agir.

Não há mais tempo para discursos simbólicos. Precisamos de regulação urgente, transparente, construída com base em princípios democráticos — e feita por quem tem mandato popular. O Brasil não pode continuar legislando por omissão.

A inteligência artificial não vai esperar. As plataformas não vão se autorregular. Os algoritmos não vão, por conta própria, proteger o debate democrático. Ou assumimos agora o controle do nosso futuro digital, ou vamos apenas assistir à desconstrução silenciosa da liberdade — pixel por pixel, vídeo por vídeo, até que não sobre mais nada.

*Marcelo Senise* – Presidente do IRIA – Instituto Brasileiro para a Regulação da Inteligência Artificial, Sócio Fundador da Social Play e CEO da CONECT I.A, Sociólogo e Marqueteiro, atua há 37 anos na área política e eleitoral, especialista em comportamento humano, e em informação e contrainformação, precursor do sistema de análise em sistemas emergentes e Inteligência Artificial. Twitter: @SeniseBSB / Instagram: @marcelosenise

 

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