A notícia chocou o país e expôs, mais uma vez, a face sombria da conectividade irrestrita: uma criança de apenas 8 anos, em Brasília, perdeu a vida ao inalar desodorante, supostamente induzida por um “desafio” viralizado em plataformas como TikTok e Kwai.
Essa tragédia não é um raio em céu azul. É a consequência direta de um ambiente digital onde a busca incessante por engajamento muitas vezes atropela a ética, a segurança e, neste caso, a própria vida.
O episódio reacende, com força e urgência inadiáveis, o debate sobre a necessidade de limites e regulamentação para as redes sociais, mas nos coloca diante de uma encruzilhada crucial: como proteger sem censurar?
É inegável que qualquer menção à regulamentação das redes sociais dispara imediatamente alarmes sobre a liberdade de expressão. E aqui, minha posição é clara e radicalmente contrária a qualquer forma de censura.
A livre manifestação do pensamento é um pilar inegociável de qualquer sociedade democrática.
Contudo, é preciso afirmar com a mesma veemência: liberdade de expressão não pode, jamais, ser confundida com um salvo-conduto para a irresponsabilidade, para a disseminação de conteúdos nocivos ou para a indução de práticas que colocam vidas em risco, especialmente as de crianças e adolescentes, cuja capacidade de discernimento ainda está em formação.
O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) estabeleceu um modelo de responsabilidade para intermediários que busca, justamente, equilibrar a liberdade na rede com a proteção de direitos.
Ele prevê a responsabilização das plataformas por conteúdos de terceiros apenas após ordem judicial específica.
Embora fundamental para evitar a censura prévia e proteger o fluxo de informações, esse modelo se mostra dolorosamente insuficiente diante da velocidade e do alcance de desafios virais letais como o do desodorante.
Esperar uma ordem judicial enquanto um vídeo perigoso se espalha exponencialmente é, na prática, assistir à tragédia em câmera lenta.
A reação política ao caso de Brasília, com senadores como Damares Alves e Leila Barros cobrando explicações das plataformas e propondo a criminalização específica desses desafios, é um passo necessário, mas ainda tímido diante da magnitude do problema.
Discursos e notas de repúdio não bastam. Precisamos ir além. O caminho, a meu ver, não reside em controlar o que pode ou não ser dito, mas em estabelecer mecanismos claros e eficazes de responsabilização para quem produz, impulsiona e lucra com conteúdos manifestamente perigosos.
Isso significa responsabilizar diretamente os criadores que idealizam e promovem desafios que atentam contra a integridade física e psicológica. Significa cobrar das plataformas digitais uma postura muito mais proativa e transparente na moderação desses conteúdos.
Seus algoritmos, desenhados para maximizar o tempo de tela e o engajamento, acabam por criar câmaras de eco que amplificam o perigo, transformando “brincadeiras” mortais em tendências globais em questão de horas.
As plataformas não são meros quadros de aviso; elas são arquitetas ativas do ambiente digital e devem ter deveres de cuidado compatíveis com seu poder e influência.
Projetos como o PL 4144/24, que tramita na Câmara e propõe responsabilizar provedores por conteúdos falsos e desinformação, apontam na direção correta ao exigir sistemas de verificação e rotulagem.
A discussão precisa avançar para incluir também a responsabilidade sobre conteúdos que, embora não necessariamente “falsos”, incitam comportamentos de alto risco. As boas práticas de moderação, que envolvem clareza nas regras, consistência na aplicação e direito à revisão, precisam ser a norma, não a exceção.
A morte desta criança em Brasília é uma ferida aberta na nossa sociedade conectada. Ela nos obriga a confrontar a complacência com que temos tratado os perigos do universo digital. A solução não virá de extremos – nem da censura que amordaça, nem da liberdade absoluta que abandona os vulneráveis à própria sorte.
Ela reside no equilíbrio difícil, mas imprescindível, entre garantir a livre expressão e exigir responsabilidade de todos os atores envolvidos.
É hora de transformar a indignação em ação concreta, focada na proteção da vida e na responsabilização de quem transforma cliques em tragédias. Afinal, quantas vidas mais precisarão ser perdidas para que finalmente entendamos que a omissão também mata!